A banda
desenhada japonesa começa a ter uma visibilidade maior entre nós, sobretudo com
a edição de obras de grande fôlego e, até, peso histórico. É o caso da coleção
Tsuru da Devir, que lançou o monumental “Nonnonba”, de Shigeru Mizuki (1922-2015).
Publicado originalmente em 1977
“Nonnonba” viria a ganhar o prémio para melhor álbum no Festival de
Angoulême... em 2007. E foi um dos eventos da BD em Portugal em 2017. Trata-se
de um “mangá” fundamental, que urge conhecer, e, sobretudo, merece ser julgado sem
o imediatismo pateta de quem dá opiniões prestando atenção superficial apenas
ao desenho. O traço caricatural e “simples” de Mizeru adequa-se na perfeição a
um relato em grande medida autobiográfico, onde abundam situações perturbadoras
de violência (social e psicológica) caraterísticas de uma sociedade
conservadora, hierarquizada e ritual. Mas onde também há lugar para a
descoberta, o humor e a magia.
Em curtos
episódios Mizeru retrata episódios da sua infância numa pequena aldeia, marcada
pela ligação a Nonnonba, uma espécie de “avó honorária”, repositório de
histórias e lendas do antigo folclore japonês, sobretudo relacionadas com os
“yokai”, que o autor absorve, e que utilizaria ao longo da sua obra. Fantasmas,
espíritos, demónios com vários tipos de caraterísticas que assombram e
influenciam comportamentos humanos, os “yokai” surgem como pontuação/influência
para diversas situações na vida das personagens. O mundo prosaico de dinâmicas
familiares, escolares e sociais é assim complementado pelo mistério impenetrável
de “outros mundos”, numa tentativa de explicar as fragilidades dos vivos. Ao
longo das muitas páginas de “Nonnonba”
sente-se o espírito humanista do autor a tomar corpo, as grandes escolhas
(artísticas e éticas) a definirem-se contra as correntes habituais da época. E espera-se que as suas experiências enquanto soldado na Segunda Guerra Mundial, outro momento que definiria o seu universo em
torno da gestão do horror potencial no mundo, possam ser a aposta seguinte.
“Bruxas” (2015, no original “Wytches”) da
GFloy toca temas semelhantes ao livro de Mizuki, embora o registo seja
totalmente diferente, e atraia outros leitores. Este é um relato de horror numa
cidade pequena da costa leste dos EUA perdida numa perturbadora floresta, e ao
qual o argumentista Scott Snyder concede personalidade própria ao modificar
elementos “clássicos”, dando-lhes uma outra roupagem/significado metafórico, e
utilizando muito bem os recursos gráficos de Jock e Hollingsworth. No fundo,
falamos (sem qualquer desprimor) de cenários e receitas narrativas típicas de
Stephen King.
O fulcro comum aos dois
livros são os elementos (eventualmente) sobrenaturais que condicionam a
existência das personagens humanas e que, no limite, podem explicar (ou desculpabilizar)
comportamentos, resgatando a nossa imperfeita humanidade. “Bruxas” é eficiente
a seguir instruções caraterísticas do género, mas tem a subtileza de um trator.
“Nonnonba” pisa mais delicadamente um território semelhante à superfície, mas é
muito mais profundo nas suas implicações, deixando ao leitor a tarefa de
deslindar a riqueza humana por entre os fantasmas. Ou vice-versa.
Nonnonba. Argumento e desenhos de Shigeru Mizuki. Devir. 420 pp., 25
Euros.
“Bruxas (Wytches)”. Argumento de Scott Snyder, desenhos de Jock
(cores de Matt Hollingsworth). GFloy. 192 pp., 16 Euros.
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