segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

ESPETROS


A banda desenhada japonesa começa a ter uma visibilidade maior entre nós, sobretudo com a edição de obras de grande fôlego e, até, peso histórico. É o caso da coleção Tsuru da Devir, que lançou o monumental “Nonnonba”, de Shigeru Mizuki (1922-2015). 


Publicado originalmente em 1977 “Nonnonba” viria a ganhar o prémio para melhor álbum no Festival de Angoulême... em 2007. E foi um dos eventos da BD em Portugal em 2017. Trata-se de um “mangá” fundamental, que urge conhecer, e, sobretudo, merece ser julgado sem o imediatismo pateta de quem dá opiniões prestando atenção superficial apenas ao desenho. O traço caricatural e “simples” de Mizeru adequa-se na perfeição a um relato em grande medida autobiográfico, onde abundam situações perturbadoras de violência (social e psicológica) caraterísticas de uma sociedade conservadora, hierarquizada e ritual. Mas onde também há lugar para a descoberta, o humor e a magia.
Em curtos episódios Mizeru retrata episódios da sua infância numa pequena aldeia, marcada pela ligação a Nonnonba, uma espécie de “avó honorária”, repositório de histórias e lendas do antigo folclore japonês, sobretudo relacionadas com os “yokai”, que o autor absorve, e que utilizaria ao longo da sua obra. Fantasmas, espíritos, demónios com vários tipos de caraterísticas que assombram e influenciam comportamentos humanos, os “yokai” surgem como pontuação/influência para diversas situações na vida das personagens. O mundo prosaico de dinâmicas familiares, escolares e sociais é assim complementado pelo mistério impenetrável de “outros mundos”, numa tentativa de explicar as fragilidades dos vivos. Ao longo das muitas páginas de “Nonnonba” sente-se o espírito humanista do autor a tomar corpo, as grandes escolhas (artísticas e éticas) a definirem-se contra as correntes habituais da época. E espera-se que as suas experiências enquanto soldado na Segunda Guerra Mundial, outro momento que definiria o seu universo em torno da gestão do horror potencial no mundo, possam ser a aposta seguinte.

 “Bruxas” (2015, no original “Wytches”) da GFloy toca temas semelhantes ao livro de Mizuki, embora o registo seja totalmente diferente, e atraia outros leitores. Este é um relato de horror numa cidade pequena da costa leste dos EUA perdida numa perturbadora floresta, e ao qual o argumentista Scott Snyder concede personalidade própria ao modificar elementos “clássicos”, dando-lhes uma outra roupagem/significado metafórico, e utilizando muito bem os recursos gráficos de Jock e Hollingsworth. No fundo, falamos (sem qualquer desprimor) de cenários e receitas narrativas típicas de Stephen King. 

O fulcro comum aos dois livros são os elementos (eventualmente) sobrenaturais que condicionam a existência das personagens humanas e que, no limite, podem explicar (ou desculpabilizar) comportamentos, resgatando a nossa imperfeita humanidade. “Bruxas” é eficiente a seguir instruções caraterísticas do género, mas tem a subtileza de um trator. “Nonnonba” pisa mais delicadamente um território semelhante à superfície, mas é muito mais profundo nas suas implicações, deixando ao leitor a tarefa de deslindar a riqueza humana por entre os fantasmas. Ou vice-versa.


Nonnonba. Argumento e desenhos de Shigeru Mizuki. Devir. 420 pp., 25 Euros.
“Bruxas (Wytches)”. Argumento de Scott Snyder, desenhos de Jock (cores de Matt Hollingsworth). GFloy. 192 pp., 16 Euros.


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