sábado, 23 de junho de 2018

MEDIÁTICO


A editora GFloy Studio tem feito um bom trabalho no que diz respeito ao volume e relação qualidade/preço das edições. Mas a sua principal virtude é a escolha de séries que, bebendo a essência de super-heróis/ficção-científica/fantasia/horror/policial, transformam-na em algo mais interessante do que as referências originais. Com o mérito adicional de manter uma regularidade de lançamentos. Neste caso temos uma continuação, três estreias.
Já muito discutida, a ópera espacial “Saga” de Brian K. Vaughn e Fiona Staples, é um excelente exemplo de como ingredientes habituais de ficção-científica podem ser transcendidos, aplicando uma abordagem realista às relações “humanas” (casais, pais e filhos, amigos/inimigos, crenças, posições políticas), que vão evoluindo, crescendo e definhando ao ritmo da narrativa. Cujo contexto é estranho apenas até nos apercebermos das inspirações que estão na sua génese. Se Romeu e Julieta tivessem sobrevivido, ter-se-iam divorciado? É este o tipo de provocação comum em “Saga”.

Também de ficção-científica espacial não é ainda possível definir totalmente “Descender”. A não ser para registar uma interessante temática de Inteligência Artificial, e a definição intimista de contexto e personagens por parte do argumentista Jeff Lemire (que trás sempre algo de surpreendente), mas sobretudo o desenho quase diáfano de Dustin Nguyen, que de início parece deslocado, até se perceber que dá o tom exato à vertente de descoberta pessoal da obra. Já “Imperatriz” de Mark Millar e Stuart Immonen parece, neste primeiro volume, pouco convincente, num registo comum a “Saga”, “Descender” (e muitas outras), que se resume a isto: “tudo o que achávamos ser verdade é mentira, e ninguém é o que aparenta”. Qual é o problema? É que esta receita funciona tanto melhor quanto menos se der por ela. Neste caso, entre perseguições e conflitos previsíveis e, sobretudo, com personagens pouco aprofundadas, demasiado óbvias ou demasiado misteriosas, a ligação terá de ficar para outro volume.

De resto não é infrequente isso acontecer com Mark Millar (e o seu Millarverse), acusado de desenvolver conceitos de maneira apressada em BD, com o objetivo de os vender mais facilmente ao cinema; como sucedeu, por exemplo, com “Kingsman”, “Kick-Ass”, ou “Wanted”. É possível, mas relevante é saber se as obras valem por si mesmas. E “O legado de Júpiter“ é, a par de “Saga”, a mais recomendável destas propostas da GFloy. 

É certo que o estratagema narrativo de imaginar de modo (mais ou menos) realista os super-heróis enquanto cidadãos, e trabalhar a sua potencial influência na sociedade (de bombeiros a ditadores) não é nada novo, considerando “Watchmen” e “Miracleman” (com argumentos de Alan Moore), ou “Marvels” e “Astro City” (escritas por Kurt Busiek, a segunda é uma clara falha editorial entre nós). Para além da elegância do traço de Frank Quitely, o que “O legado de Júpiter” acrescenta é uma abordagem aos super-heróis que joga de maneira muito inteligente com aquilo que teria de ser o mediatismo de tais personagens num mundo “real”, da modéstia recatada de alguns, ao comportamento tipo “reality show” e aspirações políticas de outros. 


No entanto, apesar da inspiração ser óbvia, haver pontos de contacto com “Saga”/Moore/Busiek (mais todos os “X-Men”), e faltar concretização na componente político-económica, “O legado de Júpiter” tem personagens credíveis, que, por acaso, também têm superpoderes. Quando se contam histórias com pessoas inacreditáveis a primeira coisa a fazer trazê-las para o mundo, dar-lhes uma dimensão humana. Para que seja plausível o momento inevitável em que os seus poderes estragam tudo.


O legado de Júpiter 1: Luta de Poderes. Argumento de Mark Millar, desenhos de Frank Quitely. GFloy Studio. 136 pp., 14 Euros.
Imperatriz 1. Argumento de Mark Millar, desenhos de Stuart Immonen. GFloy Studio. 192 pp., 16 Euros.
Saga 7. Argumento de Brian K. Vaughn, desenhos de Fiona Staples. GFloy Studio. 152 pp., 12 Euros.
Descender 1: Estrelas de lata. Argumento de Jeff Lemire, desenhos de Dustin Nguyen. GFloy Studio. 152 pp., 14 Euros.

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