quinta-feira, 2 de agosto de 2018

APATIA


Adaptar um romance para banda desenhada é sempre uma tarefa ingrata. Mesmo com descrições detalhadas a componente visual é imaginada no original, em BD há um ponto de partida gráfico que define a interpretação, e do qual não se pode fugir. Perdem-se umas dimensões, ganham-se outras. Na sua premiada adaptação de “Afirma Pereira” (2016) o francês Pierre-Henry Gomont faz um trabalho notável na abordagem do romance homónimo (1994) do escritor italiano Antonio Tabucchi (1943-2012). Não é (bem) o mesmo livro, nem poderia ser, mas é uma obra excelente, muito distinta (atrevo-me a dizer: com menos limitações) da adaptação para cinema (de Roberto Faenza em 1996, com Marcello Mastroianni).

A estreita ligação de Tabucchi a Portugal é bem conhecida, e “Afirma Pereira” uma visão lúcida da vida no Estado Novo, em 1938. Fugindo um pouco do registo de interrogatório do original, a BD segue a transformação do protagonista, de reservado cronista de cultura num jornal de Lisboa, a questionador ativo da realidade que o rodeia. Uma realidade feita de opressão, de verdades sonegadas, de pequenos informadores; de apatia medíocre. Mas também das (algo previsíveis) jovens perspetivas de mudança, inflamadas pela Guerra Civil na vizinha Espanha, que, no entanto, parecem oscilar entre o ingénuo e o inconsequente. Até que o equilíbrio é perturbado, alguma ação se torna inevitável, como inevitáveis serão as suas consequências. Atormentado por fantasmas de vidas que não teve, profundamente desiludido por um presente (o corpo, as amizades, a profissão) do qual se aliena refugindo-se em traduções de Balzac ou Daudet, procurando respostas possíveis na religião, literatura, filosofia, política, ou medicina, Pereira vai-se deixando contaminar por outras visões que, no entanto, não só não entende bem, como não sabe como operacionalizar. No fundo, Tabucchi e Gomont discutem o papel da cultura (e dos intelectuais) em tornar possível uma, aparentemente distante, Revolução.
Pierre-Henry Gomont tem um traço seguro, mas de aparência hesitante, marcado por excelentes cores crepusculares que, exaltando a luminosidade de Lisboa, paradoxalmente sublinham, até melhor que o preto e branco, o “cinzentismo” do período; bem como as angústias do protagonista e o seu evoluir enquanto cidadão. De resto, até a escolha de papel utilizado contribui para o excelente trabalho global da G. Floy Studio, dando ao livro uma qualidade de nostalgia mate. E se o autor arranja soluções gráficas engenhosas para os diálogos (monólogos) internos de Pereira, define muito bem as restantes personagens, que devem ser vistas, não como entidades em si mesmas, mas enquanto interpretações do próprio Pereira. Algo que justifica, quando necessário, a caricatura demasiado óbvia, ou mesmo a não-definição (como a que carateriza a polícia política). Em “Afirma Pereira” assume-se que grande parte do poder opressivo resulta de resignação e concordância genéricas que ninguém parece saber muito bem como foram definidas; coisas das quais não parece haver libertação, e que todos sabem que sabem. Tanto do lado dos convictamente a favor, como dos assumidamente contra. Como ainda dos resignados, distraídos ou ignorantes, que, de vez em quando, acordam e podem fazer tombar balanças. É que por vezes a mudança vem de onde menos se espera; basta não ter medo. De falhar, mas, também, de triunfar. Mesmo que nada aconteça senão o exílio, ao menos tentou-se.


Afirma Pereira. Argumento e desenhos de Pierre-Henry Gomont, adaptando o romance homónimo de Antonio Tabucchi. G. Floy Studio. 160 pp., 18 Euros.




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