Quando se fala na noção
(quase sempre exagerada) das “Duas Culturas” (há bem mais do que duas...) uma
das questões tem a ver com os debates em diferentes áreas do conhecimento. Se
alguém interessado em Física ou Biologia pode iniciar trabalho dando como
garantida a força da gravidade ou a teoria celular, em Filosofia há um
revisitar constante, redescobrindo e reinterpretando. E é muito interessante
que a Gradiva tenha investido na divulgação em banda desenhada também nesta
área, com duas obras muito interessantes, “Introdução à Filosofia em banda
desenhada” de Michael F. Patton e Kevin Cannon, e “Hereges! Os assombrosos (e
perigosos) primórdios da Filosofia Moderna”,
de Steven e Ben Nadler, de certo modo complementares nos seus objetivos.
Abordando grandes
tópicos que vão da Lógica à Ética passando pelo inevitável Deus, a viagem a que
se convida o leitor em “Introdução à Filosofia” tem um programa ambicioso para
o seu tamanho, mas o grande mérito de contar com Kevin Cannon, um autor consagrado
na banda desenhada com propósitos educativos. Ao traço caricatural claro e
dinâmico junta-se uma capacidade de resumir as ideias do coargumentista (e
professor universitário de Filosofia) Patton de um modo simples e eficaz. Claro
que a principal crítica é quase inevitável, e relaciona-se com a profundidade
com que os diferentes assuntos, de Heraclito a Nietzsche, podem ser tratados. A
palavra chave está mesmo no título: “Introdução”. Este é um livro muito bem
feito, que pede outras leituras.
Já “Hereges!” tem uma
vantagem e uma desvantagem. A desvantagem é o traço de Ben Nadler e a ilustrar
as ideias do seu pai, o filósofo Steven Nadler. Não necessariamente pelo traço
“naïf” (embora seja por vezes difícil individualizar personagens), mas com o
uso da linguagem, fazendo com que o livro seja uma sucessão de ilustrações
consecutivas, não uma BD. Mas o desenho consegue transmitir a mensagem, e é
isso que se pretende. Para além do maior tamanho, a (grande) vantagem deste
livro é que as questões abordadas no livro focam a evolução do pensamento
filosófico num espaço-tempo muito mais específico, a Europa dos séculos XVII e
XVIII, e um número pequeno (apesar de tudo) de pensadores (Descartes, Espinosa,
Hobbes, Locke, Leibniz, Newton, Voltaire, Pascal, entre alguns outros). Há
assim a possibilidade de abordar com mais detalhe (porventura até demais) as
subtis, mas profundas alterações metodológicas e conceptuais que, ao alterarem
o posicionamento de Homem perante o Espírito e a Matéria, o Inato e o
Adquirido, ou Deus e a Natureza. Reflexões que, no fundo, constituem a base
(também) da Ciência moderna. Claro que é uma visão simplificada que, por
exemplo, apresenta Newton como o grande “triunfador materialista racional” de
todo o processo, referindo apenas de passagem os seus escritos místicos, que
são tudo menos isso.
É evidente que outra
limitação destas obras está no seu foco, não só na filosofia clássica
ocidental, mas na sua interpretação franco-germano-anglo-saxónica. Certamente
diversificada, mas não tão diversificada como o mundo. Haverá outras
perspetivas, mas teria de se começar por algum lado. É algo que a própria
Gradiva parece consciente noutras circunstâncias, já que acrescentou ao título
da também recente (muito superficial e pouco interessante, apesar do tema)
“História do Sexo” (dos franceses Philippe Brenot e Laetitia Coryn), a
especificação “História da sexualidade ocidental em banda desenhada”, que não
existe no original. É sempre bom não nos esquecermos que, apesar de todo o
poder de uma herança intelectual que deu claros frutos, e que nunca poderemos
deixar de considerar, há outras formas de olhar para estes temas, que talvez
nos possam ajudar também a viver melhor uns com os outros.
Introdução à Filosofia em banda desenhada. Argumento de Michael F. Patton e Kevin
Cannon, desenhos de Kevin Cannon. Gradiva. 170 pp., 13,50 Euros.
Hereges! Os assombrosos (e perigosos)
primórdios da Filosofia Moderna. Argumento de Steven Nadler, desenhos de Ben Nadler. Gradiva. 185 pp.,
17,50 Euros.
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