sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

METÁSTASES


Há temas mais duros e difíceis do que outros. Há mesmo temas que não sabemos sequer como começar a abordar; ou como reagir se outros os abordam, sobretudo quando os abordam de forma simultaneamente crua e inteligente. Mas há também um preço a pagar pelo silêncio, pelo arrumar de problemas onde (esperemos) não nos assombrem. O conjunto de ilustrações mudas que compõem o livro “cancer” de Tilda Markström (Mmmnnnrrrg) são uma resposta possível a este tipo de inquietações, um conjunto de notáveis desenhos à volta do (de um) cancro, da sua evolução e, sem rodeios, da morte que dele resultou, já que nem sempre a Arte resgata. 

Mas “cancer” é também uma reflexão sobre a perda e de como a dor pode formar metástases, tanto como o tumor em si. A qualidade evocativa e sintética das ilustrações conta uma história clara e inexorável sem necessidade de palavras. Mas, para além de alguns pormenores do traço, são as iniciais a denunciar o autor. De facto, Tiago Manuel lança aqui mais um dos seus heterónimos, uma pintora sueca com um estilo mais simples e mais direto na sua simbologia do que a maioria dos heterónimos anteriores. Uma autora capaz de fazer passar imagens líricas, seguidas de violência, seguidas de dor, seguidas de várias formas de ausência, sendo as piores as que se adivinham sem se ver. Desde o diagnóstico, aos tratamentos e suas sequelas, à morte adivinhada por um cobertor vazio, seguimos um percurso de desagregação quase desejando não o fazer, mas não evitando virar as páginas. Para ir atrás da aranha/caranguejo que representa a doença, a teia que a espalha, as cicatrizes de mastectomia, as próteses, as metástases vermelhas, implacáveis, conquistando todo o corpo. Lançar este livro numa época natalícia pode parecer estranho, mas é exatamente o que a obra pede. Chocar, não no sentido de chocante, mas no sentido de abordar (atropelar?) o leitor de frente.

Em “cancer” há pormenores reveladores quanto ao modo íntimo com que Tiago Manuel aqui se expõe. A obra, diz a ficha técnica, estava pronta há treze anos. “Tilda Markström” faleceu em 2012, de acordo com a biografia apresentada; é duvidoso que a voltaremos a apreciar. As cartas (bilingues, português e inglês) que procuram contextualizar a perda de uma companheira no final do livro (de modo um pouco supérfluo, até) soam a um ambiente familiar do sul da Europa, embora nem toda a vida familiar na Suécia seja certamente como a retratou Bergman. E o vulto fantasmagórico que ampara a paciente na parte final é claramente masculino. Pouco importa. Com os desenhos que compõem “cancer” Tilda Markström ajudou Tiago Manuel a por em imagens algo que se percebe muito doloroso. Criando uma sublimação brilhante que, e isto é o que mais importa, transcende as circunstâncias concretas da sua génese, podendo (devendo) ser apreciado por todos os que algumas vez sofreram perdas. Por todos, portanto. Desse ponto de vista este heterónimo cumpriu plenamente o seu papel. Que descanse agora em paz.


cancer. Texto e desenhos de Tilda Markström (Tiago Manuel). Mmmnnnrrrg. 102 pp., 20 Euros.

CANÇÕES


Talvez o sinal mais intenso de uma (certa) maioridade na banda desenhada portuguesa seja, não tanto o considerável volume editorial, mas o consolidar de identidades fortes e coerentes nas editoras/editores mais interessantes. Algo que, e este é o principal mérito, torna as suas visões complementares, potencialmente abrindo o mercado a diferentes tipos de leitores, no sentido em que não é muito difícil perceber porque motivo uma obra foi editada pela Kingpin Books (Mário Freitas), e não pela GFloy (José de Freitas). Ou distinguir os interesses da Polvo (Rui Brito) dos da Mmmnnnrrrg/Chili Com Carne (Marcos Farrajota).

No caso da Kingpin Books há um fio condutor de um certo onirismo fantástico que perpassa as obras editadas a diferentes níveis, mesmo quando estas ancoram no real. Nem sempre resulta em pleno, mas o trabalho editorial tem sido digno de registo, como no mediático “O Elixir da Eterna Juventude”. Com argumento de Fernando Dórdio e desenhos de Osvaldo Medina este é, de facto, um livro que orbita (e fagocita) canções de Sérgio Godinho, com as letras dessas canções (ou suas referências) a comporem a maior parte do argumento. De resto o protagonista é uma versão do próprio Sérgio Godinho, surgindo, para além de personagens tiradas da sua obra, o Carteiro de António Mafra, Jeremias o Fora-da-Lei (Jorge Palma) e Zeca Afonso, avisando (agora e sempre) contra os Vampiros. A meta-narrativa assume-se em pleno quando a personagem “Sérgio Godinho” encontra a personagem “Fernando Dórdio”, que lhe orienta a demanda em busca do sentido da obra, rumo à imortalidade (artística). Esta é, pois, uma BD escrita em tom de homenagem, mas cujos mecanismos se ressentem da escolha de letras das canções como principal “cola” narrativa. Cada canção é um mundo, e tentar fazer de um concerto de mundos independentes (embora com referências comuns) uma história forte e una no estilo de Dórdio (“Agentes do C.A.O.S”; “Inspetor Franco: Caos e Ordem”) nunca seria tarefa fácil. Por outro lado, talvez um ensaio final/memória descritiva tivesse sido útil para situar leitores não tão familiares com o universo. 

Do ponto de vista gráfico Osvaldo Medina tem-se revelado um talentoso executante, pela fluidez do traço, o modo como compreende a linguagem e o marcar de ritmos narrativos (“A fórmula de felicidade”, “Kong, the King”), embora com menor fulgor no realismo “puro”. Curiosamente Medina admite ter como caraterística a rapidez de execução e, talvez essa capacidade o limite nalgumas obras recentes. Se na biografia de Agostinho Neto é a quantidade de texto que funciona como travão, resultando num livro ilustrado (e não tanto BD), em “O Elixir da Eterna Juventude” notam-se problemas na representação, expressões e movimento. O desenho é aqui mais rígido do que noutras colaborações com Fernando Dórdio, talvez prejudicado pela necessidade de ligação a pessoas reais/reconhecíveis. E a cor, oscilando entre uma neutralidade baça e uma agressividade exagerada, também não ajuda.
Em suma, “O Elixir da Eterna Juventude” é uma excelente ideia que merece ser descoberta por fãs de Sérgio Godinho, que se poderão dedicar à arqueologia das letras, e, sobretudo, a tentar “ouvir” as sonoridades das músicas ao longo do livro. Mas é uma BD que se estranha, e da qual se gostaria de ter gostado mais. Como o primeiro gomo da tangerina.


O Elixir da Eterna Juventude. Argumento de Fernando Dórdio, desenhos de Osvaldo Medina (cor de Joel de Souza). Kingpin Books. 90 pp., 13 Euros.