Visitar Museus como o
da Fortaleza de São Tomé em São Tomé e Príncipe é iluminador para quem tem do
tema dos Descobrimentos apenas a visão liceal clássica. É certo que estátuas
dos descobridores Pêro Escobar e João de Santarém, bem como a do povoador Álvaro
de Caminha, estão à porta, mas não identificadas; porque a História aqui, sendo
a mesma, é outra. Colonialismo, Escravatura (com ou sem esse nome), a diferença
entre a Casa Grande e a Sanzala, figuras como o governador Carlos Gorgulho e o
massacre de Batepá em 1953.
O modelo aplicado em
São Tomé era o do Brasil, talvez com a diferença de espaços e distância. Pelos
finais do século XVI na região de Pernambuco antigos escravos fugidos das
Plantações estavam bem conscientes da impossibilidade de regressar a África
(Angola, Congo). Por isso aproveitaram a vastidão remota do país para
estabelecer comunidades autónomas livres, não “oficiais”. Palmares era uma
espécie de pequena Angola, ou “Angola Janga”, e a sua capital, Macaco, tinha uma população equivalente à das maiores cidades
brasileiras da altura. É desses
tempos ainda pouco explorados que fala o monumental romance gráfico do
brasileiro Marcelo d’Salete (Polvo). De resto, as histórias curtas incluídas no
seu anterior livro “Cumbe” (Polvo, 2015) podem ser consideradas como uma
espécie de primeira tentativa esquemática de abordar este universo.
Mais do que versões
lineares de colonizadores e colonizados em lados opostos de narrativas com
diferentes heróis, em “Angola Janga” d’Salete retrata uma realidade complexa,
um equilíbrio instável e, sobretudo, pragmático entre Palmares e as autoridades
(holandesas ou portugueses), entre diferentes tipos de colonos e diferentes
tipos de serviçais, escravos ou ex-escravos. Entre o Ideal (diferente,
consoante a perspetiva) e o Possível. Nesse aspeto a realidade era trabalhada
por ambos os lados como algo fluido, e oprimidos e opressores rapidamente
criavam hierarquias internas, tão profundas como aquelas que os opunham. Nesse
sentido, os equilíbrios de Palmares retratados aqui são reminiscentes dos da
Guerra Fria, dos conflitos no Médio Oriente. As diferentes personagens, que por
vezes se confundem ao longo da obra, até podem parecer tipificadas e ter um
comportamento previsível em determinados instantes, mas essa é uma realidade
aparente, que frustra constantemente o leitor (no bom sentido). A personalidade
fascinante do carismático chefe Zumbi é, desse ponto de vista, o metrónomo da
narrativa que, mais do que contar uma história, tem o condão de abrir janelas
(não apenas históricas, mas sociais, culturais, antropológicas, políticas), que
não deixam de ressoar no Brasil contemporâneo (e no mundo). Se Palmares se foi
dissolvendo naturalmente ao longo dos anos, parte da sua herança permanece
insolúvel.
O estilo gráfico feito de
linhas a preto e branco de Marcelo d’Salete é funcional sem ser demasiado
apelativo, mas mesmo alguma rigidez teatral (nas figuras como no argumento)
concedem a “Angola Janga” um tom operático, entre o trágico e o heroico. No
entanto, e apesar de algumas questões de estilo, é quase irrelevante considerar
os méritos de “Angola Janga” enquanto banda desenhada. Este é um livro
importante, sobre uma realidade que urge conhecer e compreender. Porque a sua
descendência, nas suas várias vertentes, anda por aí.
Angola Janga. Argumento e desenhos de Marcelo d’Salete. Polvo. 482 pp.,
17,40 Euros.