terça-feira, 9 de julho de 2019

RESISTÊNCIA


Visitar Museus como o da Fortaleza de São Tomé em São Tomé e Príncipe é iluminador para quem tem do tema dos Descobrimentos apenas a visão liceal clássica. É certo que estátuas dos descobridores Pêro Escobar e João de Santarém, bem como a do povoador Álvaro de Caminha, estão à porta, mas não identificadas; porque a História aqui, sendo a mesma, é outra. Colonialismo, Escravatura (com ou sem esse nome), a diferença entre a Casa Grande e a Sanzala, figuras como o governador Carlos Gorgulho e o massacre de Batepá em 1953. 


O modelo aplicado em São Tomé era o do Brasil, talvez com a diferença de espaços e distância. Pelos finais do século XVI na região de Pernambuco antigos escravos fugidos das Plantações estavam bem conscientes da impossibilidade de regressar a África (Angola, Congo). Por isso aproveitaram a vastidão remota do país para estabelecer comunidades autónomas livres, não “oficiais”. Palmares era uma espécie de pequena Angola, ou “Angola Janga”, e a sua capital, Macaco, tinha uma população equivalente à das maiores cidades brasileiras da altura. É desses tempos ainda pouco explorados que fala o monumental romance gráfico do brasileiro Marcelo d’Salete (Polvo). De resto, as histórias curtas incluídas no seu anterior livro “Cumbe” (Polvo, 2015) podem ser consideradas como uma espécie de primeira tentativa esquemática de abordar este universo. 

Mais do que versões lineares de colonizadores e colonizados em lados opostos de narrativas com diferentes heróis, em “Angola Janga” d’Salete retrata uma realidade complexa, um equilíbrio instável e, sobretudo, pragmático entre Palmares e as autoridades (holandesas ou portugueses), entre diferentes tipos de colonos e diferentes tipos de serviçais, escravos ou ex-escravos. Entre o Ideal (diferente, consoante a perspetiva) e o Possível. Nesse aspeto a realidade era trabalhada por ambos os lados como algo fluido, e oprimidos e opressores rapidamente criavam hierarquias internas, tão profundas como aquelas que os opunham. Nesse sentido, os equilíbrios de Palmares retratados aqui são reminiscentes dos da Guerra Fria, dos conflitos no Médio Oriente. As diferentes personagens, que por vezes se confundem ao longo da obra, até podem parecer tipificadas e ter um comportamento previsível em determinados instantes, mas essa é uma realidade aparente, que frustra constantemente o leitor (no bom sentido). A personalidade fascinante do carismático chefe Zumbi é, desse ponto de vista, o metrónomo da narrativa que, mais do que contar uma história, tem o condão de abrir janelas (não apenas históricas, mas sociais, culturais, antropológicas, políticas), que não deixam de ressoar no Brasil contemporâneo (e no mundo). Se Palmares se foi dissolvendo naturalmente ao longo dos anos, parte da sua herança permanece insolúvel.


O estilo gráfico feito de linhas a preto e branco de Marcelo d’Salete é funcional sem ser demasiado apelativo, mas mesmo alguma rigidez teatral (nas figuras como no argumento) concedem a “Angola Janga” um tom operático, entre o trágico e o heroico. No entanto, e apesar de algumas questões de estilo, é quase irrelevante considerar os méritos de “Angola Janga” enquanto banda desenhada. Este é um livro importante, sobre uma realidade que urge conhecer e compreender. Porque a sua descendência, nas suas várias vertentes, anda por aí.

Angola Janga. Argumento e desenhos de Marcelo d’Salete. Polvo. 482 pp., 17,40 Euros.





As qualidades e os defeitos tendem a tocar-se, quer falemos de uma pessoa, de uma Ideia ou de um conjunto de ideias. Por exemplo, as crenças religiosas têm, simultaneamente, o poder de unir em torno de perspetivas que transcendem a “realidade”; e de suscitar discussões violentas, seja em torno de grandes linhas orientadoras, seja por questões que, à partida, parecem pormenores. Para além do óbvio, que é procurar integrar racional e sofisticadamente a inevitabilidade da morte, a biologia evolutiva procura explicar as vantagens do aparecimento da Fé de um modo lato, no sentido de lubrificante e aglutinador social de “alto nível”, com a bisbilhotice a ter o mesmo papel num nível “inferior”. Explicações a que os crentes são, como é compreensível, completamente alheios, quando não hostis.

Em banda desenhada o conceito do Super-Herói enquanto (semi)Deus existe desde a criação de “Superman” (1938), com excelentes recriações mais contemporâneas em “Watchmen” (1987) ou “Marvels” (1994). Mas o caminho do notável romance “American Gods” (2001) de Neil Gaiman é completamente diferente, no sentido, não tanto no modo como vira o conceito (os Deuses enquanto Super-Heróis), mas, sobretudo, pelo modo brilhante como explora o declínio de antigas divindades (e concomitante enfraquecimento do seu poder), perante o aparecimento de novos deuses, mais adaptados a uma era global e digital. Os deuses e rituais trazidos para os EUA da Europa, Ásia e África pelos vários migrantes vão-se, pois, adaptando e diluindo, enquanto o “melting pot” americano produz novas variantes, que concorrem por fiéis. Previsivelmente, o resultado final é uma guerra religiosa, não entre humanos, mas entre as diversas divindades disponíveis para adoração. Depois de uma bem-sucedida adaptação a série de TV surge agora a versão em banda desenhada numa excelente edição da Saída de Emergência.

Do ponto de vista gráfico o prestígio de Gaiman é visível na quantidade impressionante de nomes reunidos para o acompanhar neste projeto, complementando o trabalho-base dos habitualmente excelentes P. Craig Russell e Scott Hampton. Mas, tal como sucede com o texto, o resultado final, apesar de globalmente competente e com alguns momentos superlativos, é menor que a soma das partes, e bastante inferior ao material de origem. A ideia por detrás de “Deuses americanos” continua a ser poderosa e provocadora para quem ainda wnão a conhece, mas esta adaptação mostra que, depois do romance e da série de televisão, há limites para os formatos em que cabe exatamente a mesma ideia, sem parecer a mesma. 

Na verdade, o conceito dos “super-heróis enquanto deuses” convive muito melhor em abordagens que seguem de perto “Watchmen” e “Marvels”, como sejam, respetivamente, as séries “O legado de Júpiter” de Mark Millar e Frank Quitely (da qual a GFloy lançou já dois volumes), ou “Astro City”, de Kurt Busiek, Alex Ross (criadores de “Marvels”) e Brent Anderson (inexplicavelmente por editar em Portugal). No primeiro caso o conceito veste roupagens sociopolíticas, seguindo a instrumentalização de seres que o poder “tradicional” só pode considerar como armas poderosas, e a população em geral como Messias ou “Influencers”, Kardashians ao cubo. No segundo estamos no domínio das lendas, que, mais benevolamente, existem um pouco ao lado de uma realidade mais “clássica”, deuses que caminham connosco, partilhando parte das nossas dúvidas. Seja qual for o modelo parece que, de uma forma ou de outra, precisamos de ter fé em alguma coisa. Porque não nisto?

Deuses americanos vol. 1: Sombras. História e diálogos de Neil Gaiman (adaptando o seu romance original), guião e esboços de P. Craig Russell, desenhos de Scott Hampton (com contribuições de Walter Simonson, Colleen Doran, P. Craig Russell, Loverne Kindzierski, Laura Martin, Adam Brown, Glenn Fabry e David Mack). Saída de Emergência. 284 pp., 18,80 Euros.
O legado de Júpiter vol. 2: Revolta. Argumento de Mark Millar, desenhos de Frank Quitely. G-Floy Studio. 136 pp., 14 Euros.





DESONRA


No meio editorial estranhamente pujante que é o da BD nacional há, no entanto, propostas que merecem uma referência especial, seja pela dimensão, seja pelo arrojo. Ou, no caso de “Marcha para a morte!” de Shigeru Mizuki, pelas duas coisas, destacando-se a “reincidência” de editora Devir, que já tinha editado o igualmente monumental “NonNonBa”. Porquê? Porque as grandes radiografias do Japão que compõem a obra de Mizuki (1922-2015), estando presas a um espaço-tempo e a um estilo gráfico, tudo transcendem, para se tornarem manifestos sobre a condição humana.

Se “NonNonBa” (1977) abordava a mitologia japonesa e a infância do autor, “Marcha para a morte!” (1973) utiliza as suas experiências como soldado do exército japonês nas ilhas do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial. E é uma crítica demolidora ao militarismo em geral, e à abordagem nipónica em particular. Se no início “apenas” somos confrontados com o quotidiano quase banal e a estupidez (a todos os níveis) da guerra, mais tarde, e numa situação de derrota japonesa iminente, líderes incompetentes que só se preocupam com a sua imagem, decretam para os seus soldados a “morte nobre”; um ataque suicida em que todos deveriam perecer. O problema é que nem todos morrem, e o Estado Maior, que se antecipou aos factos e publicitou o sacrifício supremo dos soldados em prol do Império, exige que o destino se cumpra; que não haja, como não era suposto haver, sobreviventes. É assim decretada Morte, como, de acordo com Hannah Arendt, só os melhores (piores) burocratas são capazes de fazer. Tudo isto serve como pano de fundo a uma meditação dura sobre as noções tradicionais de honra e dever no Japão, um contraponto para a ligeireza e admiração com que os mesmos conceitos são amiúde abordados no Ocidente.

Graficamente o desenho de Mizuki é funcional, mas não particularmente atrativo, e se em “NonNonBa” os seres fantásticos pontuavam as histórias utilizando de forma inteligente as caraterísticas caricaturais do traço, em “Marcha para a morte!” é por vezes difícil distinguir as diferentes personagens, os muitos soldados que compõem o exército amaldiçoado pelo destino. Mas isso acaba por resultar a favor da obra, com as narrativas e percursos pessoais individualizados apesar das semelhanças na representação, todos os soldados fazendo um só. Fundamental é também a (não) imagem do “outro”, os soldados norte-americanos que aqui surgem como fantasmas quase invisíveis, com recurso também a imagens fotográficas, que contrastam com a humanização dos soldados japoneses. No fundo, Mizuki podia perfeitamente estar a falar de seres extraterrestres, e essa incapacidade de intuir a semelhança na diferença de quem está do outro lado de uma qualquer barricada, é uma das forças da sua obra, fazendo de “Marcha para a morte!” uma das mais brilhantes obras anti belicistas em banda desenhada.

Marcha para a morte! Argumento e desenhos de Shigeru Mizuki. Devir. 368 pp., 25 Euros.