terça-feira, 9 de julho de 2019


As qualidades e os defeitos tendem a tocar-se, quer falemos de uma pessoa, de uma Ideia ou de um conjunto de ideias. Por exemplo, as crenças religiosas têm, simultaneamente, o poder de unir em torno de perspetivas que transcendem a “realidade”; e de suscitar discussões violentas, seja em torno de grandes linhas orientadoras, seja por questões que, à partida, parecem pormenores. Para além do óbvio, que é procurar integrar racional e sofisticadamente a inevitabilidade da morte, a biologia evolutiva procura explicar as vantagens do aparecimento da Fé de um modo lato, no sentido de lubrificante e aglutinador social de “alto nível”, com a bisbilhotice a ter o mesmo papel num nível “inferior”. Explicações a que os crentes são, como é compreensível, completamente alheios, quando não hostis.

Em banda desenhada o conceito do Super-Herói enquanto (semi)Deus existe desde a criação de “Superman” (1938), com excelentes recriações mais contemporâneas em “Watchmen” (1987) ou “Marvels” (1994). Mas o caminho do notável romance “American Gods” (2001) de Neil Gaiman é completamente diferente, no sentido, não tanto no modo como vira o conceito (os Deuses enquanto Super-Heróis), mas, sobretudo, pelo modo brilhante como explora o declínio de antigas divindades (e concomitante enfraquecimento do seu poder), perante o aparecimento de novos deuses, mais adaptados a uma era global e digital. Os deuses e rituais trazidos para os EUA da Europa, Ásia e África pelos vários migrantes vão-se, pois, adaptando e diluindo, enquanto o “melting pot” americano produz novas variantes, que concorrem por fiéis. Previsivelmente, o resultado final é uma guerra religiosa, não entre humanos, mas entre as diversas divindades disponíveis para adoração. Depois de uma bem-sucedida adaptação a série de TV surge agora a versão em banda desenhada numa excelente edição da Saída de Emergência.

Do ponto de vista gráfico o prestígio de Gaiman é visível na quantidade impressionante de nomes reunidos para o acompanhar neste projeto, complementando o trabalho-base dos habitualmente excelentes P. Craig Russell e Scott Hampton. Mas, tal como sucede com o texto, o resultado final, apesar de globalmente competente e com alguns momentos superlativos, é menor que a soma das partes, e bastante inferior ao material de origem. A ideia por detrás de “Deuses americanos” continua a ser poderosa e provocadora para quem ainda wnão a conhece, mas esta adaptação mostra que, depois do romance e da série de televisão, há limites para os formatos em que cabe exatamente a mesma ideia, sem parecer a mesma. 

Na verdade, o conceito dos “super-heróis enquanto deuses” convive muito melhor em abordagens que seguem de perto “Watchmen” e “Marvels”, como sejam, respetivamente, as séries “O legado de Júpiter” de Mark Millar e Frank Quitely (da qual a GFloy lançou já dois volumes), ou “Astro City”, de Kurt Busiek, Alex Ross (criadores de “Marvels”) e Brent Anderson (inexplicavelmente por editar em Portugal). No primeiro caso o conceito veste roupagens sociopolíticas, seguindo a instrumentalização de seres que o poder “tradicional” só pode considerar como armas poderosas, e a população em geral como Messias ou “Influencers”, Kardashians ao cubo. No segundo estamos no domínio das lendas, que, mais benevolamente, existem um pouco ao lado de uma realidade mais “clássica”, deuses que caminham connosco, partilhando parte das nossas dúvidas. Seja qual for o modelo parece que, de uma forma ou de outra, precisamos de ter fé em alguma coisa. Porque não nisto?

Deuses americanos vol. 1: Sombras. História e diálogos de Neil Gaiman (adaptando o seu romance original), guião e esboços de P. Craig Russell, desenhos de Scott Hampton (com contribuições de Walter Simonson, Colleen Doran, P. Craig Russell, Loverne Kindzierski, Laura Martin, Adam Brown, Glenn Fabry e David Mack). Saída de Emergência. 284 pp., 18,80 Euros.
O legado de Júpiter vol. 2: Revolta. Argumento de Mark Millar, desenhos de Frank Quitely. G-Floy Studio. 136 pp., 14 Euros.





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