No meio editorial estranhamente
pujante que é o da BD nacional há, no entanto, propostas que merecem uma
referência especial, seja pela dimensão, seja pelo arrojo. Ou, no caso de
“Marcha para a morte!” de Shigeru Mizuki, pelas duas coisas, destacando-se a
“reincidência” de editora Devir, que já tinha editado o igualmente monumental
“NonNonBa”. Porquê? Porque as grandes radiografias do Japão que compõem a obra
de Mizuki (1922-2015), estando presas a um espaço-tempo e a um estilo gráfico,
tudo transcendem, para se tornarem manifestos sobre a condição humana.
Se “NonNonBa” (1977)
abordava a mitologia japonesa e a infância do autor, “Marcha para a morte!”
(1973) utiliza as suas experiências como soldado do exército japonês nas ilhas
do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial. E é uma crítica demolidora ao
militarismo em geral, e à abordagem nipónica em particular. Se no início
“apenas” somos confrontados com o quotidiano quase banal e a estupidez (a todos
os níveis) da guerra, mais tarde, e numa situação de derrota japonesa iminente,
líderes incompetentes que só se preocupam com a sua imagem, decretam para os
seus soldados a “morte nobre”; um ataque suicida em que todos deveriam perecer.
O problema é que nem todos morrem, e o Estado Maior, que se antecipou aos
factos e publicitou o sacrifício supremo dos soldados em prol do Império, exige
que o destino se cumpra; que não haja, como não era suposto haver,
sobreviventes. É assim decretada Morte, como, de acordo com Hannah Arendt, só
os melhores (piores) burocratas são capazes de fazer. Tudo isto serve como pano
de fundo a uma meditação dura sobre as noções tradicionais de honra e dever no
Japão, um contraponto para a ligeireza e admiração com que os mesmos conceitos
são amiúde abordados no Ocidente.
Graficamente o desenho
de Mizuki é funcional, mas não particularmente atrativo, e se em “NonNonBa” os
seres fantásticos pontuavam as histórias utilizando de forma inteligente as
caraterísticas caricaturais do traço, em “Marcha para a morte!” é por vezes
difícil distinguir as diferentes personagens, os muitos soldados que compõem o
exército amaldiçoado pelo destino. Mas isso acaba por resultar a favor da obra,
com as narrativas e percursos pessoais individualizados apesar das semelhanças
na representação, todos os soldados fazendo um só. Fundamental é também a (não)
imagem do “outro”, os soldados norte-americanos que aqui surgem como fantasmas
quase invisíveis, com recurso também a imagens fotográficas, que contrastam com
a humanização dos soldados japoneses. No fundo, Mizuki podia perfeitamente
estar a falar de seres extraterrestres, e essa incapacidade de intuir a
semelhança na diferença de quem está do outro lado de uma qualquer barricada, é
uma das forças da sua obra, fazendo de “Marcha para a morte!” uma das mais
brilhantes obras anti belicistas em banda desenhada.
Marcha para a morte! Argumento e desenhos de Shigeru Mizuki. Devir.
368 pp., 25 Euros.
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