segunda-feira, 23 de setembro de 2019

VERÃO


Há lançamentos apropriados em qualquer altura do ano, mas apresentar a excelente série “Verões Felizes” na estação que lhe diz respeito é uma excelente aposta da Arte de Autor, lançando num único volume os dois primeiros episódios, “Cap au Sud” (2015) e “La Calanque” (2016). A série resulta de uma colaboração entre o prolífico argumentista belga Zidrou (Benoît Drousie, n. 1962), que vive em Espanha, e o desenhador catalão Jordi Lafebre (n. 1979). E recomendá-la é dizer pouco. “Verões Felizes” é daquelas séries que nos reconcilia (se era preciso) com o potencial da BD franco-belga (neste caso hispano-belga); no sentido em que há um excelente ponto de partida, e histórias bem contadas com vários níveis de leitura (“dos 7 aos 77 anos”), mas que evitam maniqueísmos e a tentação de explicar tudo até ao mais ínfimo pormenor, prevalente noutros estilos e formatos. Há angústias profundas (pessoais, profissionais, familiares), mas também um humor que aligeira sem branquear. E os momentos de descoberta e crescimento não se assumem com dramatismo exagerado, mesmo quando parecem dramáticos. 

O pretexto para “Verões Felizes”, como o próprio nome indica, são viagens de férias de Verão, em que uma família belga (mas com ligação a exilados espanhóis fugidos a Franco) ruma ao sol, em busca de repouso, mas carregando toda a bagagem que qualquer família transporta consigo, e que não se cansa de constantemente (tentar) arrumar. De forma muito inteligente as viagens não são consecutivas, e, apesar de haver alguns sinais (ténues) daquilo que eventualmente será “o presente” das personagens, cada história corresponde às férias de um ano, 1973 para o primeiro volume, 1969 para o segundo. Ou seja, o leitor vai descobrindo a família em momentos distintos, e os saltos temporais ajudam a contextualizar “a posteriori” aquilo que se passa entre anos e nas “outras estações”, uma narrativa maior emergindo de cada episódio auto conclusivo. Por outro lado, o uso da iconografia específica de cada ano (canções, modas, política, filmes, eventos), ajuda a criar uma atmosfera muito própria, a seriedade da vida vista pelo, apesar de tudo mais “róseo”, prisma das férias. A mãe, alguém ainda em busca de rumo, e o pai, autor de banda desenhada algo frustrado com a sua carreira, são personagens muito interessantes, como são os três filhos (apenas dois no segundo volume...), em plena descoberta, de tudo. Com estes elementos Zidrou constrói argumentos que parecem simples e óbvios, mas que são ricos na sua complexidade (veja-se como são abordados temas como o racismo ou a exclusão, por exemplo), tornando a história um pouco diferente de cada vez que se lê. E dificilmente poderia ter escolhido melhor do que o excelente traço, realista, mas com um toque de exagero caricatural, de Lafebre, que faz as páginas vibrar com o genuíno entusiasmo que apenas os melhores autores conseguem transmitir.

Há ainda duas decisões editoriais importantes que, no fundo, aproximam o livro daquilo do formato que genericamente se pode considerar de “romance gráfico”. Se se pode discutir a mudança de tamanho (um pouco mais pequeno do que o original), o juntar de duas histórias num só volume ajuda na imersão do universo, já que algo frustrante no formato dos clássicos álbuns franco-belgas era descobrir uma série magnífica, e depois ter de esperar muito tempo para a reencontrar. “Verões Felizes” é para descobrir, já, por todos os tipos de leitores.

Verões felizes 1: Rumo ao sul/A calheta. Argumento de Zidrou, desenhos de Jordi Lafebre. Arte de Autor. 112 pp., 21,5 Euros.



ISOLAR




O lançamento de “Sabrina” do norte-americano Nick Drnaso numa excelente, se inesperada, edição da Porto Editora tem explicação: este foi o primeiro romance gráfico (novela gráfica, banda desenhada, BD...) finalista (“longlisted”) do prémio literário Man Booker, em 2018 (o vencedor, “Milkman” de Anna Burns, vale a pena). Sempre que isto acontece, sendo “isto” uma BD ser considerada para (ou ganhar) um prémio que “não é suposto” por ser destinado a “livros a sério”, fico deprimido. Porque não devia ser notícia, mas, sobretudo, pela minha falta de paciência, quer para os que se indignam com a distinção, quer, pior ainda, para as múltiplas “descobertas” de recém-convertidos (ou aqueles com vagas lembranças de “Tintin”, “Corto Maltese” ou “Sandman”) que aproveitam a ocasião para proclamar que a BD “agora é para adultos”, esquecendo-se o logo a seguir, com o próximo filme da Marvel. Aconteceu quando “Maus” de Art Spiegelman ganhou o Prémio Pulitzer (1992), “Jimmy Corrigan” de Chris Ware ganhou o prémio do “The Guardian” (2001), ou outras BDs ganharam prémios de literatura de terror, fantasia ou ficção-científica. É que a banda desenhada sempre foi capaz de contar estórias complexas, utilizando a sua singular linguagem de dupla gramática, escrita e desenho. Como faz, de resto, Nick Drnaso em “Sabrina”.

A história, simples nas suas ramificações absurdas, relaciona de forma brilhante os Grandes Espaços dos EUA (sejam paisagísticos ou urbanos) à pequenez vazia de muitos que os ocupam. Onde tudo e nada pode ser por acaso, e a realidade digital explode qualquer tentativa de racionalidade. O isolamento das personagens é, de resto, um pouco também o isolamento presumido da BD enquanto forma de expressão. Um isolar que tem tanto de passivo como de ativo, empurrado por forças invisíveis e teorias de conspiração que seriam ridículas, não se desse o caso de conhecermos equivalentes, em que amigos e familiares (e governos e redes sociais...) acreditam, ou fingem acreditar por diferentes motivos; com consequências desastrosas. Aquilo que começa com um crime “banal” (como banais se tornaram aquilo que são autênticas performances de violência pública), espirala para um mar revolto de desinformação, que vai muito além da vítima (ou do assassino). A inocência ou ignorância não tornam ninguém imune, e a única solução parece ser a fuga. Para a frente, para trás, para um lugar de imobilidade anestesiada, para onde for. Mas onde as personagens se fixam, numa espécie de autismo inútil, que é muito útil para que o mundo continue exatamente como está. Porque o ruído que dele surge é menos eloquente do que silêncio.
Lembrando os universos em BD de Chris Ware e Jeff Nicholson, mas com ligações a pintores como Edward Hopper e Andrew Wyeth, o grafismo “neutro” de Drnaso, com personagens inexpressivas, cores planas e longos planos de imagens repetitivas não é necessariamente fácil de assimilar, mas revela-se virtuoso no aprisionar de cada indivíduo na sua realidade. Recomenda-se ainda o anterior livro do autor, “Beverly” (2016), uma coletânea de histórias curtas que tratam muitos dos mesmos temas de isolamento, alienação, exploração e crueldade; utilizando a brevidade para focar as mesmas mensagens evidentes em “Sabrina”. Bela aposta, livro urgente. Por acaso em BD.


Sabrina. Argumento e desenhos de Nick Drnaso. Porto Editora. 205 pp., 24 Euros.