Nas mais diversas
mitologias não é incomum encontrar relatos de heróis (impolutos ou menos,
improváveis ou nem tanto) lutando contra monstros que representam o caos, a
morte, desejos inconfessados, ou o medo do desconhecido. Perseu, Teseu,
Hércules, Marduk, Thor, Indra, Sigurd, Dobrynya Nikitich, Iovan Iorgovan, São Jorge, e tantos outros,
combatem Minotauros, Medusas, ou diferentes versões de um Dragão. E ao lembrar
as lendas é fácil que heróis e monstros se transformem uns nos outros, tantos
são os pontos de contacto. Escrito
perto do ano 1000, o anónimo poema épico “Beowulf” é um marco na literatura
anglo-saxónica, e tem tido inúmeras adaptações para os mais diversos formatos,
incluindo a banda desenhada. Tantas que, à partida, se questiona a necessidade
de mais uma; o que seria um grave erro, já que é imprescindível conhecer a
magnífica adaptação de Santiago García, com uma vibrante intervenção gráfica de
David Rubín (Ala dos Livros).
Nesta sua visão de uma
história já muitas vezes contada, os autores espanhóis, sendo fiéis ao
original, conseguem dar a volta a eventos que não têm como não ser previsíveis.
Passada em vários reinos nórdicos na região das atuais Suécia e Dinamarca, a
história é protagonizada por Beowulf, jovem guerreiro do reino dos Getas, que
se oferece para combater o terrível monstro Grendel, que ronda um reino
vizinho, espalhando morte e destruição. Vencido Grendel Beowulf tem
seguidamente de lidar com a sua mãe, que procura vingar o filho. Mais tarde, um
já envelhecido Beowulf, agora Rei relutante dos Getas, tem a sua última batalha,
salvando desta vez o seu reino de um mais “clássico” dragão. Deixando de lado
as inevitáveis incongruências que rodeiam mitos, e nas quais as provações
sucessivas ao herói parecem surgir a pedido, a história é feita para uma orgia
de ação, “oferecendo” de bandeja um (quase super) Herói, e combates com três
monstros, cada um mais terrível do que o anterior. Embora comece num registo
clássico, David Rubín não desdenha esse pretexto, pelo contrário. É certo que o
seu virtuosismo pode por vezes confundir, e nem sempre se justifica, mas a
planificação de algumas pranchas é extraordinária na sua inovação, oferecendo
numa só imagem múltiplas perspetivas, o que permite criar narrativas paralelas,
focar pormenores, densificar o horror, ou dar a visão de uma mesma cena através
de diferentes olhares. O uso da cor (com destaque natural para o vermelho e negro)
ajuda a manter um dinamismo trágico e visceral, potenciando o efeito
surpreendente do desenho.
Claro que uma mera
sucessão de batalhas constituiria uma abordagem superficial, e se Rubín usa
soluções gráficas interessantes (incluindo o uso exclusivo do desenho) para
contar as diferentes “histórias dentro da história”, Santiago García emprega de
maneira inteligente outros aspetos de “Beowulf”, incluindo meditações, entre o profundo
e o gongórico, sobre coragem e dever, focando na parte final o inevitável
triunfo do envelhecimento, que tudo apaga, menos a lenda. A história não segue
por esse lado (a não ser numa sugestão homoerótica em plena batalha), mas ao fundir
Beowulf e Grendel na capa os autores sugerem uma ligação mais visceral entre
herói e monstro; se bem que o Grendel-personagem tenha a subtileza de um rolo
compressor, e “apenas” possa servir como encarnação de um Id desenfreado, um
pretexto para heróis e seus leitores questionarem identidades e limites. Numa
excelente edição luxuosa da nova editora Ala dos Livros, este é um livro que
urge conhecer, provando que há sempre maneiras inovadoras para abordar as mais
conhecidas lendas.
Beowulf. Argumento de Santiago García, desenhos de David Rubín. Ala
dos Livros. 200 pp., 25 Euros.
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