Vivemos num mundo
multicultural que se vai tornando global; ou num mundo globalizado no qual o
multiculturalismo assume contornos locais, entre a normalidade, o trágico e o
turístico? Seja como for é necessário conviver com a diferença, se bem que
pareça sempre haver, em cada contexto específico, “diferenças mais diferentes
do que outras”. Algo que também se tem de refletir do universo dos
super-heróis, e um dos exemplos mais interessantes, relevante para lá da banda
desenhada, é a nova “Ms. Marvel” (G. Floy Studio).
Americana de New
Jersey, a premiada argumentista G. Willow Wilson cresceu numa família ateia, e
foi um período de descoberta sobre as diversas religiões a conduzi-la, já em
adulta, ao Islão, ao qual se converteu, tendo vivido um período no Egito e
adotado o “hijab”. E é na sua comunidade norte-americana de origem que a
adolescente filha de imigrantes paquistaneses Kamala Khan, se vai transformar
na nova “Ms. Marvel”, equilibrando a vontade de inserção com o valor de
tradições, mesmo quando estas parecem repressivas. E, sobretudo, mostrando com
os seus retratos do dia a dia que a “cultura muçulmana” é tão variada como
qualquer outra, e não se reduz a arquétipos. Ou que estes também têm as suas
nuances, de afirmação a refúgio num contexto onde a aceitação não é total,
apesar de todas as referências culturais comuns, sobretudo para a geração que
cresce nos EUA. Apesar da premissa estar nos antípodas de outras personagens,
esta é também uma história sobre dominar os “poderes” que se obtêm quando se
passa da adolescência para a idade adulta, e de conjugar a vida para fora de
casa com a vida familiar, uma tradição que vem da Marvel dos anos 1960, com o
“Homem-Aranha” criado por Stan Lee e pelo recentemente falecido Steve Ditko.
Destinado a um público
que se identifique com a realidade da protagonista, “Ms. Marvel” enquadra-se no
tom da chamada literatura “YA” (“young adult”) na qual pontificam
contemporaneamente muitas autoras (de S.E. Hinton a J.K. Rowling). É um rótulo
como qualquer outro, mas, trabalhando uma mescla inteligente de banal e
extraordinário, o traço na fronteira entre o realismo e a caricatura do
canadiano Adrian Alphona (“Runaways”) é aqui fundamental, ao não deixar a
história resvalar, nem para o dramatismo (onde tem mais dificuldades), nem para
a leveza.
É certo que, neste
primeiro volume, o contorcionismo da protagonista para acomodar as diferentes
realidades que compõem o seu mundo subitamente em mutação é bastante mais
interessante do que as suas aventuras como o novo (e ainda pouco hábil) paladino
de Jersey City. Mas é um começo promissor para uma ideia tão original como
necessária. Será “Ms. Marvel” capaz de captar um público potencialmente
relevante que poderá não conseguir olhar para além dos super-heróis, que são,
na verdade, o que menos importa aqui? Por exemplo, leitoras ou todos os
interessados no lidar simultâneo de diferentes diferenças? Seja como for, esta
é uma série estimulante, que consegue provocar com a sua busca de uma
normalidade que não se sabe qual seja, em circunstâncias que nunca serão
normais. Bem-vindos ao mundo real.
Ms Marvel 1: Fora do normal. Argumento de G. Willow Wilson, desenhos
de Adrian Alphona. G. Floy Studio. 120 pp., 13 Euros.
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