Queremos mesmo saber a
verdade sobre o que admiramos, sejam pessoas, organizações, filosofias? Ou
preferimos a Lenda à História? Mais do que isso: não nos importamos de ser
enganados, ou queremos mesmo ser enganados; somos passivos ou ativos na nossa
demanda de absolutos idealizados que consumimos, mas em relação aos quais nunca
nos poderemos comparar?
A indústria
cinematográfica trabalha estes conceitos há décadas e, se mesmo hoje, numa
idade de informação instantânea (e supostamente “democrática”) se consegue
esconder tanta coisa, o que dizer das décadas de 1940-50, quando o “boom” de
produção de estrelas e mitos em Hollywood estava em plena consolidação? Num
ambiente de policial “negro”, a que junta a “caça às bruxas” anticomunista do
macarthismo, é este o fulcro de “The Fade Out: Crepúsculo em Hollywood” do
argumentista Ed Brubaker e do desenhador Sean Phillips, (mais) uma
imprescindível edição da G. Floy Studio.
A evolução desta dupla
tem sido muito interessante (“Sleeper”, “Incognito”, “Criminal”, “Fatale”),
notando-se uma evolução em termos das relações entre pessoas e destas com as
várias formas de Poder, muito visível em “The Fade Out”. E este é também um
projeto pessoal: John Paxton, tio de Brubaker, foi argumentista em Hollywood
nessa época (adaptou “Farewell My Lovely”, de Raymond Chandler em 1944, por
exemplo), e a mulher Sarah Jane trabalhava como relações públicas na 20th
Century Fox. As suas histórias/memórias servem de ponto de partida a “The Fade
Out”, onde o argumento mistura ficção com elementos claramente “inspirados em
eventos reais”, incluindo aparições de atores conhecidos (Clark Gable, Ronald
Reagan) e outros (mal) disfarçados, para evitar polémicas, presume-se. Passado
em 1948, se há algo a apontar a “The Fade Out” é precisamente a multiplicidade
de histórias e pontos de vistas que se cruzam, desde mistérios que vêm do tempo
do cinema mudo, de cultos como o “Great Eleven Club”, traumas da Segunda Guerra
Mundial, escritores na lista negra que usam os nomes de colegas para poderem
assinar trabalhos (como Dalton Trumbo), a influência controladora e chantagista
do FBI sobre os estúdios, produtores lascivos que nem sonhavam com o #MeToo,
atrizes rapidamente substituídas, atores disfarçando a sua sexualidade e quase
morrendo em acidentes de carro (como Montgomery Clift). E todos os mecanismos
para esconder da imprensa (como as colunistas verrinosas Hedda Hopper e Louella
Parsons) identidades ou pecados que só se perdoam se forem os pecados “certos”;
cometidos pelas pessoas “certas”. Com recurso a extensa documentação, o
universo fascinante e sórdido que os autores evocam vale em si mesmo, com o
excelente desenho anguloso e realista de Sean Phillips a destacar-se pela forma
brilhante como isola e marca as personagens em momentos de tensão e desespero.
E vale a pena citar o magnífico trabalho de Elizabeth Breitweiser na aplicação
de cor, como se estivéssemos a assistir a um filme a preto e branco em versão
sépia.
Claro que esta é uma
história policial com o seu quê de clássico, ou não fora o próprio Dashiell
Hammett fazer uma breve aparição para aconselhar personagens inspiradas nos
secundários mais perdidos e ingénuos dos seus livros. Como tal, o crime e quem
o comete é sempre acessório, mais importante é o espelho que ergue à sociedade
que retrata. Ainda assim o desenlace anti climático de “The Fade Out” parece
demasiado forçado; uma espécie de final de “Os Sopranos”, mas em expositivo.
Brilhante na surpresa; ou sinal de cansaço, como o que invade o protagonista?
Seja como for: um retrato a ter em conta, porque o culto das aparências e suas
“verdades” não mudou nada.
The Fade Out: Crepúsculo em Hollywood. Argumento de Ed Brubaker, desenhos de Sean
Phillips, cores de Elizabeth Breitweiser. G. Floy Studio. 400 pp., 35 Euros.
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