Os labirintos da saúde
mental são terreno de discussão fértil (e difícil). Onde começa a loucura e
acaba o génio, onde acabam caraterísticas individualizadoras e começam
comportamentos destrutivos. Como definir a fronteira entre uma “simples”
depressão e patologias neuropsiquiátricas; de que modo se devem diagnosticar e
abordar terapeuticamente. E qual o papel de tudo isto para a criatividade. Dois
livros muito interessantes editados pela Polvo abordam, de maneira distinta,
este tema.
Escrito e desenhado por
André Diniz, um excelente autor brasileiro radicado em Portugal. “Malditos
amigos” segue, num tom entre o intimista e o analítico, o atormentado percurso
de Ramsés, antigo autor de fanzines e atual tatuador; cuja vida pessoal e
profissional parece presa por arames que, em vez de se consolidarem, quebram e
enovelam-se. Com tudo para ser bem-sucedido o protagonista esgota-se (e aos que
o rodeiam) em insatisfações depressivas, acopladas a um comportamento agressivo
e vazios na memória, que o fazem duvidar de si mesmo, a todos os níveis.
O
argumento assume um desassombro quase aflitivo, que nos liga a Ramsés apesar de
nunca parecermos ter toda a informação necessária para decifrar as suas lutas
interiores. Do ponto de vista gráfico as obras de Diniz tendem a ganhar quando
interpretadas por outros autores, como sucede no pungente retrato sobre
violência e tráfico de droga nas favelas do Rio de Janeiro que é “Olimpo
tropical” (Polvo, desenhos de Laudo Ferreira). O traço grosso e caricatural de
Diniz tem limitações em termos de recursos e alcance (a adaptação de “O idiota”
de Dostoievski é um exemplo claro), mas em “Malditos amigos” é essa mesma
fragilidade simples e eficaz que concede um sentido de familiaridade e proximidade
com o protagonista, marcado por sombras e pelo (literal) fantasma depressivo
que o vai assombrando. Sobretudo sente-se que Diniz seria o único desenhador
possível para este projeto, que se intui muito pessoal (como “O idiota”,
curiosamente), e que vale a pena conhecer.
O mesmo se pode dizer
de “Os regressos” no qual o crítico e argumentista Pedro Moura prolonga a sua
colaboração com a desenhadora Marta Teives, desta feita numa obra mais longa do
que as (excelentes) histórias curtas anteriores. Tal como nesses contos, temos
uma protagonista em suspenso: apesar de não ter pruridos em se identificar como
ex-“maluca”, Madalena surge-nos presa de um passado feito de memórias (nem
sempre felizes) cuja lenta recuperação se inicia com o regresso ao local de
infância (um dos regressos do título). Entre estranheza, loucura, alguma
violência implícita, diagnósticos, psicofármacos e a (re)criação (ou
redescoberta?) de um rico mundo de fantasia, a vida anterior e atual de Madalena
espreita o leitor. Sugerida, mais do que contada, por entre as pontas do
argumento e no desenho notável de Marta Teives, muito eficaz nos diversos
cambiantes, utilizando um registo de “realismo flexível”. A contracapa avisa
que nunca se deve regressar a um sítio onde já se foi feliz, mas sente-se que
ao ler “Os regressos”, ou “Malditos amigos”, não temos informação suficiente
para apreciar devidamente as espirais (em sentidos opostos) dos protagonistas.
A questão aqui é sempre a mesma: com uma narração mais expositiva corre-se o
risco de encadear com o óbvio, procurando uma subtileza que se quer orgânica
(clara na relação texto-desenho de Moura e Teives) ou múltiplos ângulos/aspetos
(no caso de Diniz) pode não se conseguir a empatia necessária para apreciar
todos os sacrifícios das personagens, e os seus respetivos desenlaces. Mas
aguardam-se com expetativa projetos futuros destes excelentes autores.
Malditos amigos. Argumento e desenhos de André Diniz. Polvo. 200 pp., 12
Euros.
Os regressos. Argumento de Pedro Moura, desenhos de Marta Teives. Polvo.
72 pp., 10 Euros.
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