Adaptar um romance para
banda desenhada é sempre uma tarefa ingrata. Mesmo com descrições detalhadas a
componente visual é imaginada no original, em BD há um ponto de partida gráfico
que define a interpretação, e do qual não se pode fugir. Perdem-se umas
dimensões, ganham-se outras. Na sua premiada adaptação de “Afirma Pereira”
(2016) o francês Pierre-Henry Gomont faz um trabalho notável na abordagem do
romance homónimo (1994) do escritor italiano Antonio Tabucchi (1943-2012). Não
é (bem) o mesmo livro, nem poderia ser, mas é uma obra excelente, muito
distinta (atrevo-me a dizer: com menos limitações) da adaptação para cinema (de
Roberto Faenza em 1996, com Marcello
Mastroianni).
A estreita ligação de
Tabucchi a Portugal é bem conhecida, e “Afirma Pereira” uma visão lúcida da
vida no Estado Novo, em 1938. Fugindo um pouco do registo de interrogatório do
original, a BD segue a transformação do protagonista, de reservado cronista de
cultura num jornal de Lisboa, a questionador ativo da realidade que o rodeia.
Uma realidade feita de opressão, de verdades sonegadas, de pequenos
informadores; de apatia medíocre. Mas também das (algo previsíveis) jovens
perspetivas de mudança, inflamadas pela Guerra Civil na vizinha Espanha, que,
no entanto, parecem oscilar entre o ingénuo e o inconsequente. Até que o
equilíbrio é perturbado, alguma ação se torna inevitável, como inevitáveis
serão as suas consequências. Atormentado por fantasmas de vidas que não teve,
profundamente desiludido por um presente (o corpo, as amizades, a profissão) do
qual se aliena refugindo-se em traduções de Balzac ou Daudet, procurando
respostas possíveis na religião, literatura, filosofia, política, ou medicina,
Pereira vai-se deixando contaminar por outras visões que, no entanto, não só
não entende bem, como não sabe como operacionalizar. No fundo, Tabucchi e
Gomont discutem o papel da cultura (e dos intelectuais) em tornar possível uma,
aparentemente distante, Revolução.
Pierre-Henry Gomont tem
um traço seguro, mas de aparência hesitante, marcado por excelentes cores
crepusculares que, exaltando a luminosidade de Lisboa, paradoxalmente
sublinham, até melhor que o preto e branco, o “cinzentismo” do período; bem como
as angústias do protagonista e o seu evoluir enquanto cidadão. De resto, até a
escolha de papel utilizado contribui para o excelente trabalho global da G.
Floy Studio, dando ao livro uma qualidade de nostalgia mate. E se o autor arranja
soluções gráficas engenhosas para os diálogos (monólogos) internos de Pereira,
define muito bem as restantes personagens, que devem ser vistas, não como
entidades em si mesmas, mas enquanto interpretações do próprio Pereira. Algo
que justifica, quando necessário, a caricatura demasiado óbvia, ou mesmo a
não-definição (como a que carateriza a polícia política). Em “Afirma Pereira”
assume-se que grande parte do poder opressivo resulta de resignação e
concordância genéricas que ninguém parece saber muito bem como foram definidas;
coisas das quais não parece haver libertação, e que todos sabem que sabem.
Tanto do lado dos convictamente a favor, como dos assumidamente contra. Como
ainda dos resignados, distraídos ou ignorantes, que, de vez em quando, acordam
e podem fazer tombar balanças. É que por vezes a mudança vem de onde menos se
espera; basta não ter medo. De falhar, mas, também, de triunfar. Mesmo que nada
aconteça senão o exílio, ao menos tentou-se.
Afirma Pereira. Argumento e desenhos de Pierre-Henry Gomont, adaptando o romance homónimo de
Antonio Tabucchi. G. Floy Studio. 160
pp., 18 Euros.
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