A banda desenhada
portuguesa tem tido poucas figuras de dimensão global. Não que muitos dos
nossos excelentes autores não sejam reconhecidos (e editados)
internacionalmente, refiro-me aqui ao aportar de uma dimensão adicional clara,
que obrigaria a falar deles mesmo que não fossem portugueses. Não sendo
totalmente insano fico-me pelo óbvio histórico, constituído por nomes
conhecidos também de outras atividades: Rafael Bordallo Pinheiro, Carlos
Botelho, Stuart Carvalhais, E. T. Coelho.
Um conjunto ao qual
gostaria muito que fosse possível adicionar Fernando Relvas (1954-2017). Quem
descobriu as suas páginas (na revista “Tintin”, no semanário “Se7e”) reconheceu
de imediato um talento inato no traço, na anatomia, no movimento, no jogo de
sombras, na composição gráfica da página, na definição de personagens, na
construção de diálogos, no fluir da narrativa. O preto e branco de Relvas tem
uma qualidade excecional, e não se diz isso de muitos. Qual é, pois, a questão?
Desde logo a continuidade. Publicando regularmente na imprensa, a BD de Relvas
ironicamente sofre com o seu talento espontâneo e repentista, e as histórias
tendem a perder foco (mesmo considerando a sua vertente nonsense); sobretudo
quando lidas de seguida, e não ao ritmo a que foram publicadas. Noutra
perspetiva, mesmo no caso dos (mais ou menos) “reformados” da BD, como, por
exemplo, António Jorge Gonçalves, Miguel Rocha, João Paulo Cotrim ou José
Carlos Fernandes há bibliografia que pode ser mostrada a novos leitores, e que
facilmente justificaria a sua posição enquanto autores de relevo, não só em
Portugal. No caso de Relvas é, sejamos justos, mais difícil. A exceção é a
aventura urbana “L123 (seguido de Cevadilha Speed)”, original de 1981, coligido
em 1998, e um dos melhores livros da BD portuguesa.
Daí a importância de
edições cuidadas como “O espião Acácio”, que reúne as histórias curtas
humorísticas publicadas na revista “Tintin” entre 1978 e 1980. Passada numa
Primeira Guerra Mundial apócrifa, as aventuras do protagonista homónimo são, no
fundo, um comentário sobre a essência, não do português, mas do “tuga”. Nas
diversas peripécias inverosímeis a que o autor o sujeita Acácio de Mello passa
incólume enquanto camaleão oportunista adaptável a diferentes realidades, que
espia para todos, e que só se safa porque o mundo que o rodeia ainda é menos
inteligente do que ele. Para além do virtuosismo gráfico (e de elementos que se
calhar hoje já não poderiam ser publicados do mesmo modo), é delicioso ver as mais
diversas citações, de tudo. É certo que “Acácio” prefigura também aquilo que
iria acontecer noutros trabalhos, com a oscilação constante da história, que
inclui a intromissão de elementos anacrónicos (como a ficção científica),
embora aqui o nonsense assumido ancore a série. Numa sequência muito conseguida
Relvas farta-se da personagem e resolve acabar com ela, sendo forçado a voltar
atrás num momento de meta-narrativa em que o autor é confrontado por um editor
anónimo. Algo que, se calhar, deveria ter acontecido mais vezes.
Não é possível hoje
puxar as orelhas a Relvas, como não o foi no passado. Mas esta é uma edição
essencial para se entender o seu percurso, e alvíssaras são devidas à
Turbina/Mundo Fantasma, e a Júlio (M)oreira e Margarida Mesquita, por um
serviço que transcende memórias pessoais. Já agora: alguém que edite a página de
Fernando Relvas na Wikipedia. Merece mais.
O espião Acácio. Argumento e desenhos de Fernando Relvas. Turbina/Mundo
Fantasma. 120 pp., 22 Euros.
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