sexta-feira, 20 de julho de 2018

ACÁCIO


A banda desenhada portuguesa tem tido poucas figuras de dimensão global. Não que muitos dos nossos excelentes autores não sejam reconhecidos (e editados) internacionalmente, refiro-me aqui ao aportar de uma dimensão adicional clara, que obrigaria a falar deles mesmo que não fossem portugueses. Não sendo totalmente insano fico-me pelo óbvio histórico, constituído por nomes conhecidos também de outras atividades: Rafael Bordallo Pinheiro, Carlos Botelho, Stuart Carvalhais, E. T. Coelho.
Um conjunto ao qual gostaria muito que fosse possível adicionar Fernando Relvas (1954-2017). Quem descobriu as suas páginas (na revista “Tintin”, no semanário “Se7e”) reconheceu de imediato um talento inato no traço, na anatomia, no movimento, no jogo de sombras, na composição gráfica da página, na definição de personagens, na construção de diálogos, no fluir da narrativa. O preto e branco de Relvas tem uma qualidade excecional, e não se diz isso de muitos. Qual é, pois, a questão? Desde logo a continuidade. Publicando regularmente na imprensa, a BD de Relvas ironicamente sofre com o seu talento espontâneo e repentista, e as histórias tendem a perder foco (mesmo considerando a sua vertente nonsense); sobretudo quando lidas de seguida, e não ao ritmo a que foram publicadas. Noutra perspetiva, mesmo no caso dos (mais ou menos) “reformados” da BD, como, por exemplo, António Jorge Gonçalves, Miguel Rocha, João Paulo Cotrim ou José Carlos Fernandes há bibliografia que pode ser mostrada a novos leitores, e que facilmente justificaria a sua posição enquanto autores de relevo, não só em Portugal. No caso de Relvas é, sejamos justos, mais difícil. A exceção é a aventura urbana “L123 (seguido de Cevadilha Speed)”, original de 1981, coligido em 1998, e um dos melhores livros da BD portuguesa. 

Daí a importância de edições cuidadas como “O espião Acácio”, que reúne as histórias curtas humorísticas publicadas na revista “Tintin” entre 1978 e 1980. Passada numa Primeira Guerra Mundial apócrifa, as aventuras do protagonista homónimo são, no fundo, um comentário sobre a essência, não do português, mas do “tuga”. Nas diversas peripécias inverosímeis a que o autor o sujeita Acácio de Mello passa incólume enquanto camaleão oportunista adaptável a diferentes realidades, que espia para todos, e que só se safa porque o mundo que o rodeia ainda é menos inteligente do que ele. Para além do virtuosismo gráfico (e de elementos que se calhar hoje já não poderiam ser publicados do mesmo modo), é delicioso ver as mais diversas citações, de tudo. É certo que “Acácio” prefigura também aquilo que iria acontecer noutros trabalhos, com a oscilação constante da história, que inclui a intromissão de elementos anacrónicos (como a ficção científica), embora aqui o nonsense assumido ancore a série. Numa sequência muito conseguida Relvas farta-se da personagem e resolve acabar com ela, sendo forçado a voltar atrás num momento de meta-narrativa em que o autor é confrontado por um editor anónimo. Algo que, se calhar, deveria ter acontecido mais vezes.

Não é possível hoje puxar as orelhas a Relvas, como não o foi no passado. Mas esta é uma edição essencial para se entender o seu percurso, e alvíssaras são devidas à Turbina/Mundo Fantasma, e a Júlio (M)oreira e Margarida Mesquita, por um serviço que transcende memórias pessoais. Já agora: alguém que edite a página de Fernando Relvas na Wikipedia. Merece mais.

O espião Acácio. Argumento e desenhos de Fernando Relvas. Turbina/Mundo Fantasma. 120 pp., 22 Euros.

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